Poucos jogos conseguem capturar a essência da fantasia e traduzi-la em uma experiência que mistura escapismo, reflexão e diversão como Metaphor: ReFantazio.
Desenvolvido pela Atlus, sob a direção de Katsura Hashino (conhecido por seu trabalho na série Persona), este RPG de alta fantasia é uma obra-prima que transcende o gênero JRPG, entregando algo que é ao mesmo tempo familiar e inovador.
Uma Fantasia Espelhada na Realidade
A história de Metaphor: ReFantazio se passa no Reino Unido de Euchronia, um mundo fictício dividido em três nações unificadas após uma guerra devastadora.
A trama começa com o assassinato do rei, um evento que mergulha o reino em caos político. Sem herdeiros diretos, a sucessão ao trono será decidida por um torneio real, onde os participantes competem não apenas com habilidades físicas e mágicas, mas também com sua capacidade de conquistar a confiança do povo.
O protagonista, acompanhado por sua fiel fada Gallica, embarca em uma jornada para curar o príncipe amaldiçoado e restaurar a ordem no reino.
Porém, essa missão é apenas a superfície de uma narrativa rica em camadas. O jogo explora temas como ansiedade coletiva, poder político e a busca pela identidade pessoal em meio ao caos.
A ideia central é clara: como a fantasia pode nos ajudar a enfrentar as adversidades do mundo real?
O maior triunfo de Metaphor: ReFantazio está em sua capacidade de usar a fantasia como uma ferramenta para explorar questões filosóficas profundas. O jogo questiona os limites do escapismo: até onde podemos usar a fantasia para fugir da realidade? E quando essa fuga se torna uma forma válida de enfrentar nossos medos?
A narrativa também aborda a ansiedade coletiva como um inimigo invisível que afeta toda a sociedade.
Em Euchronia, assim como no mundo real, as pessoas enfrentam dilemas morais complexos enquanto tentam encontrar esperança em meio ao caos.
Outro tema recorrente é o conceito de utopia. O jogo sugere que talvez uma sociedade perfeita seja impossível, não porque não possamos alcançá-la tecnicamente, mas porque nossa própria natureza humana está repleta de contradições. No entanto, isso não significa que devemos desistir; pelo contrário, Metaphor nos inspira a buscar melhorias incrementais no presente.
Personagens e seus arquétipos
Os personagens de Metaphor são mais do que simples figuras narrativas; eles são representações vivas de arquétipos psicológicos.
O protagonista e seus aliados podem despertar para diferentes Arquétipos, classes únicas que influenciam suas habilidades e papéis no combate.
Essa mecânica não apenas aprofunda a jogabilidade, mas também simboliza o tema central do jogo: o poder latente dentro de cada indivíduo.
Para despertar seus arquétipos, os personagens precisam literalmente arrancar seus próprios corações, em um gesto visceral que traduz a luta interna e o sacrifício necessários para revelar seu verdadeiro potencial.
Gallica, a fada companheira do protagonista, serve como um guia moral e emocional ao longo da jornada. Sua presença é um lembrete constante de que mesmo nos momentos mais sombrios, há luz e esperança.
Além da Gallica, para evitar spoilers mais profundos, vamos nos concentrar nos dois primeiros membros do grupo: Leon Strohl e Hulkenberg. Esses personagens não apenas definem o tom inicial da jornada, mas também exemplificam como Metaphor utiliza a fantasia para explorar questões humanas complexas.
Leon Strohl: Um lorde sem seu reino
Leon Strohl é, sem dúvida, um dos personagens mais marcantes de Metaphor: ReFantazio. Ele é o primeiro aliado do protagonista e rapidamente se destaca tanto pela profundidade de sua história quanto por sua personalidade cativante.
Strohl é um jovem nobre da tribo Clemar, uma raça que ocupa uma posição elevada na hierarquia social de Euchronia. No entanto, sua origem privilegiada contrasta fortemente com a tragédia que moldou sua vida.
Sete anos antes dos eventos do jogo, a vila natal de Strohl, Halia, foi completamente destruída por um ataque devastador.
Esse evento não apenas o deixou órfão, mas também o marcou profundamente com traumas que ele carrega até hoje.
Apesar disso, Strohl não sucumbiu ao ódio ou à amargura; em vez disso, ele canalizou sua dor em um forte senso de justiça. Ele é movido pela vontade de proteger os inocentes e garantir que ninguém mais sofra como ele sofreu.
A história de Strohl também levanta questões filosóficas sobre o que significa ser nobre, não no sentido aristocrático, mas no sentido moral.
Ele poderia facilmente usar sua posição social para se isolar ou buscar vingança pessoal, mas escolhe um caminho mais altruísta. Essa escolha reflete um tema central do jogo: a verdadeira nobreza está em servir aos outros, mesmo quando isso exige sacrifício pessoal.
Strohl também desafia a ideia tradicional de heroísmo. Ele não é perfeito; seus traumas às vezes o tornam impulsivo ou excessivamente protetor. No entanto, é exatamente essa imperfeição que o torna humano e relacionável. Ele nos lembra que heróis não são aqueles que nunca falham, mas aqueles que continuam lutando apesar das falhas.
Quando Strohl desperta para seu Arquétipo de Guerreiro, ele personifica a força bruta e a determinação inabalável.
No campo de batalha, ele é uma verdadeira potência, assumindo a linha de frente com ataques devastadores que muitas vezes superam os danos causados por outros membros do grupo no início do jogo. Suas habilidades refletem sua personalidade: diretas, poderosas e focadas em proteger aqueles ao seu redor.
Mas o arquétipo não é apenas uma ferramenta mecânica; ele simboliza a jornada interna de Strohl. O Guerreiro representa sua luta para superar o trauma e encontrar um propósito maior em sua dor.
É uma metáfora para a ideia de que a força verdadeira vem não da ausência de sofrimento, mas da capacidade de enfrentá-lo e crescer a partir dele.
Hulkenberg: A Muralha Inquebrável
Se Strohl é a espada do grupo, Hulkenberg é o escudo. Como membro da Guarda Real encarregada de proteger o príncipe desaparecido, Hulkenberg carrega consigo um profundo sentimento de culpa por ter falhado em sua missão original.
Essa falha define sua jornada inicial no jogo, enquanto ela busca redenção ao lado do protagonista.
Hulkenberg pertence à tribo Roussainte, conhecida por sua estatura imponente e força física excepcional. Sua presença no grupo é tanto literal quanto figurativa: ela é uma fortaleza móvel que protege seus aliados não apenas com suas habilidades defensivas, mas também com sua determinação inabalável.
A jornada de Hulkenberg toca em temas universais como culpa e redenção. Ela acredita firmemente que falhou com aqueles que jurou proteger, e essa crença alimenta tanto sua força quanto suas inseguranças.
Sua história nos faz questionar: até onde devemos ir para corrigir nossos erros? E será que a redenção verdadeira está em reparar o passado ou em construir algo novo no presente?
Hulkenberg também desafia as expectativas tradicionais associadas ao papel feminino em histórias medievais fantasiosas. Ela não é uma donzela em perigo nem uma figura maternal; ela é uma guerreira completa com suas próprias motivações e conflitos internos.
Sua força física impressionante é acompanhada por uma força emocional igualmente poderosa, tornando-a uma personagem multifacetada e inspiradora.
O Arquétipo de Cavaleira de Hulkenberg reflete perfeitamente sua personalidade e papel na equipe. Ela é especializada em habilidades defensivas e suporte tático, garantindo que seus aliados possam lutar sem medo. Suas ações no campo de batalha são marcadas por um equilíbrio entre força bruta e estratégia cuidadosa.
Mais do que isso, o arquétipo simboliza seu compromisso com os ideais de honra e dever. A Cavaleira representa alguém que carrega o peso das responsabilidades passadas enquanto busca construir um futuro melhor mesmo quando isso significa enfrentar seus próprios demônios internos.
Como é jogar Metaphor: ReFantazio?
A jogabilidade de Metaphor: ReFantazio é uma das áreas em que o jogo mais se destaca, oferecendo um equilíbrio fascinante entre sistemas tradicionais de RPG e inovações que desafiam as expectativas.
A Atlus conseguiu criar um sistema robusto que combina combate estratégico, gerenciamento de tempo e exploração de dungeons, tudo isso enquanto mantém uma sensação de urgência narrativa.
Combate Híbrido: Rápido e Tático
O sistema de combate híbrido de Metaphor, que alterna entre ação em tempo real e batalhas por turnos, é um dos grandes destaques do jogo.
No modo Rápido, jogadores podem atacar inimigos diretamente durante a exploração das dungeons, eliminando instantaneamente adversários que estejam pelo menos três níveis abaixo do protagonista. Essa mecânica torna o grind mais eficiente e agiliza a progressão.
Contudo, enfrentar inimigos no modo Rápido apresenta riscos quando eles estão em níveis semelhantes ou superiores. Se o ataque for bem-sucedido, o jogador inicia a batalha tática com duas rodadas de vantagem, enquanto o inimigo perde metade da vida. Por outro lado, um ataque mal-executado dá ao inimigo a vantagem inicial.
Já contra inimigos mais fortes, sinalizados pela visão feérica de Gallica, o combate muda para o modo Tático, adotando batalhas por turnos. Metaphor aqui evoca semelhanças com Persona, como o sistema de fraquezas que concede turnos extras ao explorá-las. No entanto, esse bônus é limitado a um turno adicional, evitando combos infinitos.
O ritmo das batalhas é mais rápido e fluido, com comandos simplificados que permitem decisões ágeis sem perder a profundidade estratégica. Essas mudanças tornam o combate de Metaphor tão inovador quanto envolvente.
O tempo não para
O gerenciamento de tempo em Metaphor: ReFantazio é uma evolução do sistema visto na série Persona, mas com uma abordagem mais voltada para a agência narrativa.
Metaphor: ReFantazio se passa ao longo de um período de quatro meses dentro do calendário fictício de Euchronia, e o protagonista tem um tempo limitado para resolver grandes eventos que impactam diretamente a história. Cada decisão consome tempo, e isso exige que o jogador priorize suas ações com cuidado.
Um dos aspectos mais marcantes do sistema de tempo é como ele conecta exploração e descanso. Explorar dungeons durante o dia consome energia dos personagens, e ao retornar à base à noite, o grupo estará exausto, restando apenas a opção de dormir.
Isso cria um dilema estratégico: vale a pena explorar uma dungeon ou fazer as atividades diárias? já que além das dungeons, há várias atividades que consomem tempo no jogo, como: Fortalecer vínculos com aliados, participar de debates para aumentar virtudes (atributos sociais), ler livros ou realizar treinamentos, viajar entre localidades.
Essas escolhas afetam diretamente o desempenho dos personagens em combate e as interações narrativas.
No entanto, um problema do sistema é que, se bem administrado, o jogador pode acabar com dias “sobrando” sem nada útil para fazer nos momentos finais da campanha, algo que pode ser frustrante para quem gosta de otimizar cada momento.
Sistema de Classes (Arquétipos)
Uma das maiores inovações em relação à série Persona é o sistema de classes (chamado Arquétipos). Em Metaphor, qualquer membro da party pode assumir qualquer classe disponível no jogo. Essa liberdade permite uma personalização muito maior das estratégias do grupo.
Os Arquétipos não apenas definem as habilidades e atributos dos personagens, mas também influenciam seu estilo de combate nos modos Rápido e Tático. Por exemplo:
Um personagem equipado com o Arquétipo Mago terá acesso a ataques elementais poderosos no modo Tático e poderá recuperar MP eliminando inimigos no modo Rápido.
Já um personagem com o Arquétipo Tanque pode assumir a linha de frente nas batalhas por turnos ou usar habilidades defensivas para proteger aliados durante explorações perigosas.
Essa flexibilidade incentiva os jogadores a experimentarem diferentes combinações e adaptarem sua equipe às necessidades específicas de cada dungeon ou evento narrativo.
Novos arquétipos estão ligados a história do jogo, já que são liberados aos poucos enquanto o protagonista vai conhecendo mais afundo seus seguidores.
Uma verdadeira obra de arte
Visualmente, Metaphor é deslumbrante. A estética mistura elementos medievais com toques modernos e surreais, criando um mundo único que parece vivo. As cenas animadas em estilo anime são integradas perfeitamente à narrativa, adicionando emoção aos momentos cruciais da história.
Uma das decisões mais intrigantes da equipe de desenvolvimento foi buscar inspiração nas obras do pintor holandês Hieronymus Bosch, um mestre do surrealismo religioso do século XVI.
A grande inspiração foi seu famoso tríptico O Jardim das Delícias Terrenas. Bosch é conhecido por suas representações bizarras e simbólicas da humanidade, frequentemente retratando figuras híbridas que mesclam características humanas, animais e objetos inanimados em cenas caóticas.
Essa influência é mais evidente no design dos “humanos”, os inimigos grotescos que habitam o mundo de Uchronia
A escolha de Bosch como referência artística não é apenas estética; ela está profundamente conectada aos temas filosóficos do jogo.
Bosch era um crítico feroz da condição humana, frequentemente explorando a corrupção moral, o pecado e as consequências espirituais das ações humanas em suas obras.
Em Metaphor, essa visão pessimista da humanidade se manifesta no próprio conceito dos “humanos”. Eles não são apenas monstros; são metáforas vivas para os males sociais que permeiam Euchronia: ganância, desigualdade, medo e desespero.
Essa abordagem também levanta questões sobre a natureza do inimigo no jogo. Se os “humanos” são representações distorcidas da humanidade, o que isso diz sobre os protagonistas que lutam contra eles? Será que a luta contra essas criaturas é uma tentativa de purgar os próprios pecados ou uma negação das falhas humanas? Assim como nas pinturas de Bosch, as respostas não são claras, deixando espaço para interpretações pessoais.
Além dos humanos, o mundo de Euchronia é igualmente inspirado pela arte renascentista, com cenários que parecem ter sido pintados à mão. As cidades possuem uma arquitetura detalhada, enquanto as dungeons misturam elementos medievais com toques surreais. Cada ambiente é cuidadosamente projetado para criar uma sensação de maravilha e desconforto ao mesmo tempo.
A trilha sonora é outro ponto alto. Composta por Shoji Meguro (também da série Persona) complementa perfeitamente essa estética visual única.
Meguro mistura melodias orquestradas épicas com sons experimentais que evocam o surrealismo presente nos designs inspirados por Bosch. Cada faixa parece contar sua própria história, amplificando as emoções transmitidas pelo cenário e pelos eventos narrativos.
Durante encontros com chefes, a música incorpora coros dissonantes e instrumentos estranhos para criar uma atmosfera opressiva. Em contraste, as cidades possuem temas mais melódicos e estruturados, refletindo a ordem aparente dessas sociedades em meio ao caos subjacente.
Vale a pena jogar Metaphor: ReFantazio?
Retomando meu pensamento da introdução: poucos jogos conseguem capturar a essência do que significa explorar um mundo de fantasia com tamanha maestria como Metaphor: ReFantazio.
A Atlus entregou não apenas um RPG tecnicamente impecável, mas também uma experiência emocional e filosófica profunda que ressoa além das telas.
Ao combinar narrativa rica e complexa com sistemas de gameplay inovadores, o jogo eleva o gênero JRPG, desafiando convenções e criando algo simultaneamente familiar e surpreendente.
Cada personagem, cenário e mecânica serve a um propósito maior, reforçando temas que questionam o escapismo, a busca pela identidade e a luta por um mundo melhor, mesmo quando utópico.
Seja pelo seu combate híbrido empolgante, pela exploração estratégica ou pela profundidade emocional de sua história, Metaphor: ReFantazio não é apenas um jogo; é uma jornada inesquecível que nos inspira a sonhar, refletir e lutar, tanto em reinos fictícios quanto em nossa própria realidade.
É uma fantasia que, como o próprio nome sugere, espelha nossas lutas e aspirações humanas com um brilho mágico único.
Agradecemos aos amigos da Atlus que gentilmente nos enviaram uma cópia do jogo para a criação deste review.