Dispatch chega como um raro sopro de novidade no cenário dos jogos narrativos. É o primeiro título do AdHoc Studio, formado por veteranos que deixaram sua marca em alguns dos clássicos episódicos mais queridos do passado, muitos deles ex-membros da lendária Telltale Games.

Esse detalhe não é mero currículo: ele carrega um certo peso histórico. Houve uma época em que jogos baseados em escolhas pareciam o futuro das narrativas interativas, e a Telltale foi o símbolo desse movimento. Mas o estúdio acabou se perdendo em meio a contratos caros de franquias licenciadas, uma expansão rápida demais e uma gestão caótica que culminou em seu colapso em 2018.
Dispatch, por outro lado, não tenta ressuscitar velhas marcas nem vender nostalgia. É uma IP totalmente nova, uma comédia de escritório com super-heróis, sarcasmo e caos administrativo, que mistura gerenciamento de equipe e decisões narrativas com um toque de humor ácido. Mais do que um jogo, ele soa como uma declaração: é possível recomeçar o gênero apostando em ideias próprias, personalidade e criatividade, em vez de depender do peso de grandes licenças.

Entre heróis e fracassos: a queda de Mecha Man
Nos primeiros episódios de Dispatch, conhecemos Robert Robertson III, o terceiro de sua linhagem a vestir o traje de Mecha Man. O título passou de avô para pai, sempre acompanhado de glória e tragédia, ambos morreram dentro da armadura, como verdadeiros mártires do heroísmo. Robert, por outro lado, carrega o peso de não ter tido o mesmo destino. Ele sobreviveu. E essa sobrevivência, em vez de alívio, virou um fardo. Ele se culpa por ter sido o elo fraco, o herdeiro que quebrou o legado da família.

Logo no prólogo, ele cai numa armadilha arquitetada por seu arqui-inimigo, uma cena intensa que termina com a destruição total do traje e, simbolicamente, de tudo o que ainda restava da sua identidade. Ver o uniforme sendo despedaçado é quase como assistir o fim da linhagem Robertson acontecendo diante dos olhos.
Sem armadura, sem propósito e mergulhado em autopiedade, Robert acaba aceitando um trabalho como dispatcher em uma agência que supervisiona ex-vilões reformados. É um emprego que soa como rebaixamento, e é mesmo, mas o que o convence a aceitar é a promessa de que recriariam o traje de Mecha Man para ele. A ideia de recuperar o símbolo da família é o que o mantém de pé, mesmo dentro de um sistema corporativo que transforma heróis em ferramentas de marketing e “redenção” empresarial.

Essa introdução já define bem o tom de Dispatch: uma mistura agridoce de humor ácido, melancolia e crítica ao culto da imagem heroica. O jogo brinca com o absurdo da rotina de escritório aplicada ao mundo dos superpoderes, mas no fundo, é sobre um homem tentando redescobrir quem ele é quando o legado que o sustentava desmorona.
Dispatch foi lançado em formato episódico, com dois episódios por semana, somando oito capítulos no total. Eu só decidi escrever essa review agora, depois de ver toda a temporada completa e honestamente, foi uma jornada que ficou melhor a cada episódio. O humor ácido vai crescendo, os personagens ganham profundidade, e o absurdo do mundo, onde superpoderes convivem com a rotina de um escritório, vira o grande charme do jogo.

As atuações são um dos pontos altos. O elenco é excelente, cheio de nomes que dão vida e personalidade aos personagens. As falas fluem naturalmente, o humor é entregue no tempo certo e, quando o tom fica mais sério, as interpretações seguram o peso sem cair no drama exagerado. Dá pra sentir que existe uma direção de voz cuidadosa, explorando bem o sarcasmo, o cansaço e até a raiva contida dos personagens. Isso faz toda diferença num jogo tão dependente de texto e performance.
Visualmente, Dispatch aposta num estilo que lembra bastante animações adultas como Invincible, não por copiar, mas por transmitir a mesma sensação de algo “grande”, cinematográfico, com enquadramentos fortes e uma direção de arte que valoriza expressão corporal e impacto. As cenas de ação e os momentos mais intensos são muito bem animados, mostrando que o estúdio realmente quis entregar algo com qualidade de série premium.
E o humor… bom, ele é definitivamente para maiores de 18. É ácido, muitas vezes cruel, e não tem medo de tocar em temas desconfortáveis. As piadas são afiadas, cheias de sarcasmo e comentários sobre o próprio absurdo que é o mundo dos super-heróis corporativos. Tem momentos que me fizeram rir alto, outros que me deixaram meio desconcertado e é justamente esse contraste que faz o jogo funcionar tão bem.

Entre o caos e o café frio: o que é jogar Dispatch
Jogar Dispatch é como tentar manter uma agência de super-heróis funcional enquanto o mundo desaba. A estrutura de gameplay mistura momentos cinematográficos com pequenos quick time events e de escolhas morais com uma parte mais estratégica, em que você literalmente “despacha” os heróis para resolver emergências. É uma combinação curiosa entre drama interativo e gerenciamento de equipe, e funciona surpreendentemente bem.

Grande parte da experiência lembra o estilo Telltale: diálogos ramificados, decisões que mudam a forma como os personagens te veem e até pequenas consequências que aparecem episódios depois. Só que Dispatch adiciona um toque de ironia e uma boa dose de caos.

Entre uma conversa tensa e outra, o jogo abre o mapa de missões e é aí que entra o lado estratégico. Cada incidente aparece com descrições como “roubo em andamento”, “negociação de reféns” ou “crise de reputação”, e cabe a você decidir quais heróis enviar. À primeira vista parece simples, mas há nuances: cada personagem tem atributos próprios (Combate, Vigor, Mobilidade, Carisma e Intelecto) e falhas pessoais que podem transformar uma missão de rotina em um desastre completo.

E o elenco tem personalidade, alguns heróis se recusam a participar de certas operações, enquanto outros se voluntariam sem pensar duas vezes. Escolher mal pode resultar em ferimentos, quedas de moral ou até heróis ficarem indisponíveis por um tempo.

Essas decisões acabam sendo mais envolventes do que parecem. O jogo traz sistemas de fadiga e relacionamento entre os heróis, algumas duplas funcionam bem juntas, outras se odeiam abertamente. No fim, não é só estratégia: é política de escritório.
Há ainda alguns mini-games pontuais, como seções de hacking que quebram o ritmo sem parecer encheção de linguiça. São rápidos, leves e ajudam a manter a imersão entre um diálogo e outro.

Ainda assim, Dispatch não é perfeito. Nos primeiros episódios, o sistema de missões serve mais como pano de fundo do que como mecânica realmente desafiadora. Algumas escolhas parecem ter pouco peso imediato, e quem espera um jogo de estratégia profundo pode achar que falta substância. Mas, com o passar dos capítulos, o sistema vai se expandindo, e dá pra sentir que a ideia tem fôlego pra crescer.
Vale a pena jogar?
No fim das contas, Dispatch me surpreendeu em todos os sentidos. É inteligente, sarcástico e cheio de momentos que te fazem repensar cada escolha, tanto no campo de batalha quanto nos bastidores da agência. As decisões têm peso real, os personagens são cativantes e o sistema estratégico transforma cada missão em um pequeno drama cheio de tensão e humor. Mesmo com uma proposta aparentemente simples, o jogo entrega uma experiência densa, divertida e viciante.
Vale a pena jogar? Sem dúvida. Dispatch é aquele tipo de game que te prende pela escrita afiada e pelas consequências inesperadas, uma joia rara entre os títulos narrativos modernos.

Agradecemos os amigos da AdHoc Studio que nos enviaram uma cópia de Dispatch de PC para a criação deste review.













