Quando Disco Elysium foi lançado pela ZA/UM em 2019, a indústria de jogos já havia presenciado uma série de RPGs focados em histórias complexas. No entanto, poucos títulos foram tão longe na exploração da psicologia e da moralidade humana quanto este.
Em sua essência, Disco Elysium transcende o conceito de um jogo de RPG convencional, oferecendo uma experiência em que a narrativa, escolhas e autodescoberta se entrelaçam em um retrato cru e filosófico da condição humana. A obra se destaca por sua ousadia em abolir combates físicos e, em vez disso, usar a mente como principal arena de conflito, onde ideias e instintos colidem em um balé caótico de decisões.
Revachol: A Alma de uma Revolução Perdida
Revachol é muito mais do que um pano de fundo; é um personagem por si só. Situada em um universo alternativo onde a geopolítica é tão complexa quanto a nossa, a cidade exala uma beleza sombria e brutalidade implacável.
O ambiente mistura elementos de noir com distopias pós-revolucionárias, resultando em uma metrópole que é, ao mesmo tempo, opressiva e cativante. Cada distrito de Revachol conta uma história única: o decadente bairro de Martinaise, onde se desenrola a maior parte da trama, que é apenas um resquício de uma cidade que já foi o epicentro de revoluções e conflitos.
As ruas de paralelepípedos, os edifícios desgastados e os murais grafitados não são meros detalhes; são memórias congeladas de um povo que ainda luta para se encontrar após décadas de desilusão e fracasso.
O mundo de Disco Elysium não só reflete as divisões políticas e sociais que conhecemos, mas as exagera para provocar uma introspecção crítica.
As referências históricas e sociais se entrelaçam com a ficção, abordando temas como colonialismo, desigualdade e a luta entre diferentes sistemas ideológicos, tudo isso sem cair em clichês simplistas.
Cada NPC tem uma história que se entrelaça com esse cenário multifacetado, reforçando a sensação de que Revachol é um organismo vivo, pulsando com memórias e expectativas.
História de Disco Elysium: Um Enigma Existencial e Policial
O enredo começa de maneira crua e inusitada: o protagonista, um detetive sem nome (posteriormente chamado de Harry Du Bois), acorda em um quarto de hotel em ruínas, com uma ressaca colossal e sem a menor lembrança de quem é. Essa introdução, carregada de simbolismos, já sinaliza que o jogo não irá poupar o jogador de mergulhos profundos na psique de seu personagem.
O caso principal — investigar o cadáver pendurado em uma árvore do lado de fora — rapidamente se expande em uma teia de mistérios interligados que envolvem questões políticas, relações de poder e até o sobrenatural.
A narrativa de ‘Disco Elysium’ se distingue pelo modo como permite ao jogador moldar a identidade de Harry.
Dependendo das escolhas feitas, Harry pode ser um policial racional e metódico, um bêbado autodestrutivo, um idealista romântico ou um manipulador cínico.
Essa flexibilidade narrativa é um dos maiores trunfos do jogo, pois oferece uma experiência personalizada onde o protagonista pode tanto se redimir quanto afundar mais na decadência. A amnésia do detetive não é apenas um recurso narrativo comum; é uma ferramenta para explorar temas de perda, falhas e o anseio por uma segunda chance, tanto pessoal quanto coletiva.
Dialogando com a Própria Mente
O coração de Disco Elysium está em sua mecânica de RPG, que desafia as convenções tradicionais do gênero. Em vez de combates físicos, o jogo apresenta um sistema de diálogo dinâmico e uma “batalha mental” constante.
Cada uma das 24 habilidades do protagonista é uma faceta de sua personalidade que interfere diretamente na narrativa. Essas habilidades falam com o jogador, oferecendo sugestões, julgamentos e, em alguns casos, provocando dilemas que podem desestabilizar ou enriquecer a investigação.
O sistema de verificações de habilidade é uma das principais formas de interatividade. Essas verificações são feitas por rolagem de dados e de bônus coletados durante diálogos ou por equipamentos, que podem resultar em falhas ou bem-sucedidas, não são apenas um meio de progredir na história; elas influenciam como o mundo e seus habitantes percebem Harry. O fracasso em uma verificação pode levar a insights inesperados ou momentos cômicos, mostrando que a derrota em Disco Elysium é tão valiosa quanto o sucesso.
Outro principal aspecto é a mecânica de Gabinete de Pensamentos, onde o jogador pode desenvolver ideias ou obsessões ao longo do jogo, afetando as estatísticas e desbloqueando novas opções de diálogo. Essa abordagem acrescenta uma camada extra de estratégia e reflexão, incentivando o jogador a considerar cuidadosamente como deseja moldar seu personagem e sua abordagem à investigação, já que para desenvolver cada ideia o personagem vai demorar algum tempo pesquisando e irá ter uma penalidade enquanto estiver na pesquisa.
Vale a pena jogar Disco Elysium?
Disco Elysium não é para todos. Sua narrativa densa, ritmo deliberado e foco em diálogos e decisões introspectivas exigem paciência e uma disposição para explorar a profundidade da psique humana.
No entanto, para aqueles que buscam uma experiência que transcenda as batalhas e missões tradicionais dos RPGs, este jogo oferece uma das experiências mais recompensadoras e transformadoras da última década.
Com uma escrita magistral, mecânicas inovadoras e um mundo ricamente detalhado, Disco Elysium se estabelece como um marco na indústria dos games e uma obra-prima que continua a influenciar discussões sobre o potencial da narrativa interativa.
Revachol não é apenas uma cidade que você visita; é um estado de espírito que permanece com você, desafiando suas certezas e convidando-o a revisitar sua jornada em busca de novas respostas.