Junho chegou, e com ele as cores do arco-íris pintam o calendário, marcando o Mês do Orgulho LGBTQ+. É um tempo de celebrar, lembrar, mas também de pensar sobre tudo que já conquistamos e as lutas que ainda temos pela frente.

No mundo dos games, essa conversa fica ainda mais complicada. A gente vê alguns avanços, ainda tímidos, mas importantes, com mais personagens e histórias diversas aparecendo. Ao mesmo tempo, surge uma reação forte, um pessoal mais conservador que usa o termo “woke” como xingamento, tentando barrar qualquer passo em direção a um cenário mais inclusivo e representativo.
Vamos dar uma olhada nesse padrão de rejeição que ainda assombra a comunidade gamer e reforçar porque a representatividade LGBTQ+ é tão essencial. Para começar, vale lembrar uma reflexão que eu publiquei em março de 2023 aqui no Review de Jogos, chamada Jogos com representatividade LGBTQIAP+. Naquele texto, eu, como pessoa não-binária, comemorei exemplos como Life is Strange, The Last of Us, Celeste e até algumas tentativas (umas meio frustradas, como em Forza Horizon 5, outras que deram certo, como em Wild Hearts) de incluir pronomes neutros. Meu artigo, escrito com a alegria de quem se vê, mesmo que raramente, na tela, terminava com um pedido: que a representatividade deixasse de ser uma “surpresa boa” para virar regra. Quase dois anos depois, a pergunta é: a gente avançou? Ou a resistência só ficou mais barulhenta e organizada?
A real é que, para muita gente na comunidade gamer, qualquer coisa que fuja do padrão, o herói homem, branco, cis, hétero, ou a personagem feminina que segue um certo molde de beleza, é recebida com raiva.
Representatividade incomoda, e os ataques, muitas vezes escondidos atrás de uma suposta ‘crítica séria’, mostram um preconceito que está lá, bem fundo. Pega o caso da Bella Ramsey, atriz não-binária que fez a Ellie na série The Last of Us da HBO. Desde que anunciaram, Ramsey sofreu uma chuva de ódio por causa da aparência. As críticas não eram sobre o talento dela, que já tinha mostrado em outros trabalhos, como por exemplo em Game Of Thrones, mas sim porque ela não era ‘bonita o bastante’ ou não parecia com a Ellie do jogo.

A própria atriz contou, em entrevista à The Hollywood Reporter, que ficou ‘obcecada’ com a aparência da personagem e se sentiu culpada por seu corpo não ser igual ao ideal criado no computador. É triste ver como a pressão pela beleza e a misoginia (mesmo contra uma pessoa não-binária) funcionam, diminuindo o trabalho da atriz por causa de um padrão impossível e que, sinceramente, não tem nada a ver com a qualidade da série.
O diretor Craig Mazin mandou bem ao dizer que o importante era a emoção da personagem, não a aparência, mas o ódio na internet continuou, mostrando que, para muitos, a Ellie perfeita só existe se ela agradar a um certo gosto visual.
A hipocrisia desse jeito de rejeitar fica ainda mais clara quando a gente vê a reação ao boato (nem confirmado) de que a Hunter Schafer, atriz transgênero, poderia fazer a Princesa Zelda numa adaptação live-action. Schafer até parece fisicamente com a personagem. Mas foi só o boato sair para uma enxurrada de comentários transfóbicos tomar conta dos fóruns e redes sociais. O argumento? Zelda não seria trans, então escalar a atriz seria “woke” e estragaria tudo. Ignoram, convenientemente, que Hunter Schafer é uma mulher, assim como Zelda. O problema nunca foi parecer com a personagem ou ser boa para o papel, mas sim a identidade de gênero da atriz.

Isso mostra a hipocrisia de uma galera que vive defendendo ator hetero cisgenero fazendo papel LGBTQ+ dizendo que “é só atuação”, mas não aceita o contrário, deixando claro que é a transfobia, e não a preocupação com a arte, que move essa raiva.
Esse incômodo com o que foge do padrão aparece de várias formas. Em Intergalactic: The Heretic Prophet, novo jogo da Naughty Dog, a protagonista Jordan, uma mulher asiática e careca, foi recebida com deboche e críticas sobre sua suposta “feiura” antes mesmo do jogo sair. Vídeos no YouTube e posts em redes sociais, destilam preconceito, chamando o jogo de “woke” só por ter uma heroína que não se encaixa no padrão de beleza e feminilidade. A atriz até respondeu indiretamente, mas o estrago na imagem do jogo e a exposição da misoginia e racismo escondidos em parte da comunidade já estavam feitos. Ser careca, ser asiatica, ser diferente do esperado, tudo virou motivo para desqualificar o jogo inteiro, mostrando que a crítica, nesse caso, era só uma desculpa para o preconceito.

E quando a representatividade ousa tocar em identidades de gênero que não seguem a norma, a reação é ainda pior. Dragon Age: The Veilguard, da BioWare, sofreu um retaliação gigante e campanhas de “review bombing” antes mesmo de chegar para os jogadores. O motivo? A chance de criar um protagonista transgênero (Rook), com opções de customização que incluem cicatrizes de cirurgia, e a presença de companheiros não-binários na história. A BioWare já tem um histórico de inclusão, como o personagem Krem em Dragon Age: Inquisition, mas parece que mostrar pessoas trans e não-binárias de forma tão clara em The Veilguard foi demais para os setores mais conservadores.
Termos como “lacração” e acusações de que a representatividade era “forçada” ou “cringe” apareceram por todo lado. Atores do projeto falaram publicamente sobre a tristeza e frustração com os ataques, chamando a situação de “ridícula”. Fica óbvio que a raiva, aqui, era especificamente contra a existência e a visibilidade de identidades trans e não-binárias, um reflexo direto da transfobia que ainda existe na nossa sociedade e, infelizmente, ecoa na comunidade gamer.
Com tudo isso acontecendo, é importante a gente se perguntar de novo: por que representatividade importa tanto? Como eu apontei naquele meu artigo de 2023, e como muita gente confirma, ter personagens LGBTQ+ nos jogos é fundamental. Dá visibilidade e força, principalmente para jovens que estão se descobrindo e procurando exemplos para se identificar. Desafia aqueles estereótipos chatos, mostrando a diversidade de verdade, sem caricaturas, o que deixa as histórias e a nossa experiência como jogadores muito mais ricas. E, talvez o mais importante, ajuda a gente a ter mais empatia, convidando a gente a se colocar no lugar de personagens com vidas diferentes das nossas, nos aproximando de outras realidades.
Meu artigo de 2023 já trazia exemplos legais. A série Life is Strange, com a relação central entre Max e Chloe no primeiro jogo, virou um refúgio e um marco para muitos jogadores queer, mesmo com as discussões sobre alguns clichês como o “bury your gays”. The Last of Us, tanto no primeiro jogo com a história sutil, mas emocionante, de Bill e Frank (que ficou ainda maior na série da HBO), quanto na DLC Left Behind e em The Last of Us Part II, colocou personagens LGBTQ+ (Ellie, Dina, Lev) no centro de uma das maiores franquias que existem.

A história do Lev, um garoto trans fugindo de uma comunidade radical, foi um passo corajoso e necessário para mostrar pessoas trans num jogo gigante, gerando debates importantes sobre realismo e trauma. A própria Abby, com aquele corpo musculoso que desafiava os padrões de feminilidade, acabou virando alvo de misoginia e transfobia internalizada, mesmo sendo uma personagem cisgênero.
Desde 2023, quando eu comemorava os pronomes neutros em Wild Hearts e Just Dance e lamentava como foi feito de forma superficial em Forza Horizon 5, parece que a coisa ficou mais intensa. A representatividade talvez tenha ficado mais clara em alguns cantos, mas a reação contra ela também ficou mais forte e organizada. O “review bombing” virou tática comum, e o discurso de ódio disfarçado de crítica séria ficou mais profissional.
A própria discussão sobre um jogo ser “woke” muda conforme o sucesso que ele alcança. Antes mesmo do lançamento, muitos gamers já estão prontos para odiar e planejar boicotes, como aconteceu com Assassin’s Creed Shadows. Se o jogo acaba sendo ruim ou tem vendas fracas, a culpa recai sobre o fato de ele ser “woke”. Mas, quando o jogo se revela bom, essa crítica simplesmente desaparece. Foi o que ocorreu com Kingdom Come: Deliverance 2: antes do lançamento, houve polêmica ao descobrirem a possibilidade de um relacionamento gay entre Henry e Hans. A internet rapidamente se mobilizou contra o jogo, mas, como ele acabou sendo um ótimo título, todo mundo fingiu que aquela reação inicial nunca existiu.

É hora de chamar as coisas pelo nome. O termo “woke”, que foi sequestrado e distorcido pela extrema-direita, significa, na real, estar atento às injustiças sociais. Nos games, ser “woke” é simplesmente aceitar que os jogadores são diversos e merecem se ver nas histórias que jogam. É ter empatia. É entender que um personagem ser lésbica, trans, não-binário, negro, asiático, gordo, careca, ou qualquer outra coisa que fuja da norma imposta, não piora um jogo, pelo contrário, deixa ele mais rico.
As críticas cheias de raiva contra Bella Ramsey, Hunter Schafer, a protagonista de Intergalactic ou a diversidade de Dragon Age não são críticas de verdade sobre roteiro, jogabilidade ou design. São demonstrações de preconceito. São gamers presos a um passado idealizado onde só eles eram validados, com raiva de perder esse privilégio.
É essa toxicidade que expulsa minorias dos espaços online e transforma comunidades que deveriam ser de festa e diversão em lugares hostis. Neste Mês do Orgulho, e em todos os outros meses, a gente precisa defender com força a inclusão nos games. Apoiar os desenvolvedores que têm a coragem de desafiar o padrão e trazer personagens diversos para o centro das atenções.
Celebrar jogos como Assassin’s Creed Shadows, Baldur’s Gate 3, Kingdom Come: Deliverance 2, Life is Strange e The Last of Us Part II, pela coragem, mesmo sabendo que a representação pode e deve sempre melhorar. Criticar o preconceito onde ele aparecer, sem dar espaço para a intolerância disfarçada de opinião. O universo dos games é grande demais para ser só de um grupo. Ele deve ser um espelho do mundo real, com toda a sua complexidade, beleza e diversidade. Que o arco-íris continue invadindo nossas telas, não como uma “surpresa boa”, mas como a regra vibrante e acolhedora que todo mundo merece.